(18:08 h)
devo ser eu mesmo aquele sujeito que vem por ali
saltando o muro escorregando até a calçada
como um rato com sua sombra retorcida
pela própria velocidade das patas
correndo pelo canto das paredes
atravessando mais uma vez a avenida sem olhar
para os lados sem olhar para as motocicletas
para os automóveis sem olhar para o caminhão
que coleta aquilo que é a sobra do que somos
devo ser eu aqui debruçado sobre uma outra avenida
sob o vão do majestoso palácio das artes
essa colossal caixa feita de pó de cimento de vidro
essa obra em suspenso como uma respiração
como a minha própria respiração
pendurada sobre a avenida nove de julho
entupida por um interminável cortejo de carruagens
a avenida engarrafada por infinitas tartarugas
iluminadas pela frente e por trás iluminadas
pela cor dos faróis pela dor clara dos faróis
já são quase um milhão delas uma a outra atadas
como um cintilante cordão quase imóvel
tartarugas penetrando uma a uma penetrando
no túnel cavado muito abaixo dos meus pés
devo ser eu mesmo aquele outro sujeito que vem por ali
escavando e atravessando o ar irrespirável
por cima de outro viaduto que tem por baixo
mais uma fieira de animais inomináveis
cada um deles soprando uma nota musical
cada um deles que somado ao outro vão compondo
uma sinuosa melodia uma sinfonia jamais ouvida
mas que se desdobra e que se desloca desde ali
sob os pés daquele outro que também sou eu
que tropeça na ranhura da calçada
daquele outro que sabe percebe intui
que abaixo de seus pés estão vastas obras
impressas nas paredes do fundo do viaduto
devo ser eu aqui mesmo sob o vão do museu
à espera
à minha espera
até que eu chegue
e toque com a ponta de um dos dedos
meu ombro
minhas costas
até que eu me volte e encontre a mim mesmo
me oferecendo uma caixa
uma diminuta caixa
onde caberão todos os meus pertences
e também todas as misérias do mundo