(23:38)
então aprenda
camarada
a conviver com tudo isso
com a memória
que se desfigura
com o agente da funerária
e com o manobrista
com a anfitriã
e se nada me falha
com os garçons
e com o cominho
e aprenda a conviver
também
com o juiz
e com a sua digníssima senhora
e com os réus
e com os outros
todos
aqueles
que viveram
tanto quanto eu
naquela tarde
inesquecível
mas
enquanto a noite ainda treme
estou aqui
sob o caramanchão
na entrada do restaurante
na fila de espera
para que então
eu possa aprender
definitivamente
a encarar os seres
tão parecidos
e tão diferentes
somos deste modo
cada um
uma partícula caída do paraíso
aliás
que lugar é esse
de onde
a cada dia
somos
expulsos
novamente?
mesmo assim
sou o último da fila
por estar sozinho
enquanto espero
senhoras e senhores
imagino
que sou poeta
um duradouro poeta
daqueles velhos
bem velhos
que campearam
amaram
e destruiram
e desertaram
e construíram
torres
e imaginários países
devo ser também
um daqueles poetas
de quem não percebi
entre os versos
uma espécie de silêncio
que nunca deveria ser esquecido
sim, o silêncio
eis a solidão
de um homem
que está no último lugar da fila
isto
é o mesmo que imaginar
vertigens:
por exemplo,
estamos todos mortos
estamos todos vivos
o manobrista
está morto e está vivo
a anfitriã do restaurante
os seguranças
os garçons
o cominho
os réus e os juízes
as pessoas
estarão sempre à minha frente
vivas
mortas
e completamente famintas