(06:13 h)

areia movediça
finalmente estamos juntos
deve ser invenção de deus
tem uma passagem por aqui
vejo o dia apesar das pálpebras,
maldito diário:
isto é apenas o começo
essa é a mulher que eu sempre quis
finalmente
quando é que ela vai embora?
é tão cedo e há tanto ruído
o vizinho troca as telhas
isso me assusta
e a garota na cama
me abraça
tudo começa assim
sem sentido
me levanto
abro as cortinas
as janelas
volto pra cama
vi um filme ontem à noite
um bebê no colo do avô
os dois sorriam
não lembro mais nada
não me diga nada
escrever é estar sozinho
areia movediça
o assoalho afundando
cada dia que chega
fica mais difícil
levantar
(07:08 h)

este sim
deve ser o sonho
sempre esqueço o que são cadarços
amarrá-los
os dedos
os nós
qual é o bicho que me calça?
ele tem meu cheiro
meus sapatos
também
as vestes nada representam
no elevador
estou descendo
o inferno está perto
mais perto do que nunca
não foi isto que senti
ao olhar-me no espelho
a genuína face do homem
reconstituída
continuo descendo
há uma cancela
eu sou mais um bicho
quase esqueci do espelho
da lâmina apurada
esculpindo
o que já não sou
os fios da barba
dilacerada
um pão
um copo com café
o olhar dela
que sempre está lá
por trás do balcão
não há manhãs para ela
meu pão meu café meu café com pão
ela está sempre lá
sorrindo
sou eu que nunca estou lá
mas sou eu que desço
com a face lisa
pensando nela
pelas escadas
do metrô



































(07:47 h)

sempre que entro num trem
lembro de Cochabamba
que tempos!
foram os melhores
tempos
lá havia revolução
e as viagens não tinham rumos
como esta:
praticamente entalado
entre o real
e a irrealidade
travando
intimidade com um universo
desconhecido
seres de todas as outras galáxias
espalhando seu cheiro
misturando-se ao meu
cheiro
sou apenas um bicho
um animal
na direção
do matadouro
pressentindo o fim
mas são apenas letras de canções
que me distraem
no sacolejo
no sacolejo
não resisto ao ritmo
uma freada
ou quase isto
um encontrão
estou novamente desperto
para o sonho da manhã
eu sou um homem
atravessando a cancela
não me levanto
eu já estou em pé
disparando
penso novamente
eu sou um homem
fugindo
na direção contrária
(08:19 h)

um verso
acaricia
meus tímpanos
Antony suspira
uma oração
de Leonard Cohen
e
eu
estou
subindo
sei que é muito cedo
mas
estou subindo
as escadas
enfim
livre
da minha própria espécie
apesar de cercado
por ela
mas
se for a sua vontade
me calarei
e serei
o meu próprio silêncio
e serei
minha própria prisão
e desistirei do amor
se for a sua vontade
subirei
cada degrau
basta que me diga
até onde
se for sua vontade
vencerei
esta manhã
e enterrarei
esta prece
em qualquer lugar
desde que seja
bem perto
do paraíso
(08:23 h)

que mundo é este
que me acolhe?
qual divindade me trouxe
até aqui?
penso estar no topo
mas estou somente
na altura
do chão

e agora
um pouco mais acima:
ocupo
finalmente
um mundo que contém
apenas
o meu tamanho

lançado para fora
da boca do metrô
estou
sem meus fones
sem meus ouvidos genuínos
não há mais música
nada será tão sublime
ficará apenas a tola poesia humana
devidamente concentrada
e dissolvida
num alarido
só me resta trabalhar
e assassinar ilusões
e um café e um cigarro
antes de subir
34 andares
é lá que sou o autêntico
assassino
aquele é meu reino
olharei para eles
são 18 seres
chamarei um de cada vez
não pedirei desculpas
sou um profissional
do abate
famílias inteiras
à beira do precipício
e a vida continuará
e eu direi
vocês estão dispensados
do trabalho
companheiros queridos
(09:18)

nenhum dia é exatamente como aquele
que desejei
tenho uma espátula nas mãos
corto o envelope
numa das laterais
e tento lembrar
a quem foi que entreguei a chave
do meu futuro

retiro do envelope
a folha de papel
dobrada
em quatro
cada uma das partes contém
um pouco de desesperança
são trechos de um poema que nunca escrevi
apenas
me foi dada a tarefa
de traduzí-lo
em voz alta
sem embargo
olho para os olhos da garota
à minha frente
são olhos de ouro puro
contundentes
uma jovem e bela mulher
na verdade
meus dedos tremem
apuro a voz
ela bem sabe
o que o futuro lhe reserva
mas transmite uma doçura
assustadora
ainda vou ter que viver
por muito tempo
para compreender
como alguém
pode ser assim
(11:38 h)

se fosse só isto,
decepar uma dúzia de cabeças antes do meio-dia
se não fosse apenas meu trabalho
aquele ao qual me debruço
sistematicamente
sem um soluço
apesar da caixa de lenços de papel
sempre a mão para os eventuais
e dispensáveis funcionários
de tão magnífica empresa
aquela a qual represento
como carrasco
diariamente
com dedicação e orgulho
se fosse só isto,
o telefonema
e a secretária do consultório oncológico
confirmando o horário
sim, o resultado dos exames chegaram
e o Doutor Adolfo Friedhenreich
urge em encontrar-me
logo após o meio-dia
então saio nas ruas sem o paletó
e nada alojado ao estômago
além do pão sagrado da manhã
se fosse só isto,
as inumeráveis xícaras de café e o sopro
o sopro dos cigarros
desajeitadamente à janela do último andar
entre uma e outra cabeça cortada
mas
a avenida ferve em sua luz de inverno
a gente toda passa sem se recordar
quem fui
quem serei
eu que sou
um estrangeiro em qualquer lugar
eu que tenho minha impressão digital
indelével nas águas
das pias das igrejas das catedrais
deve ter sido
naquela benção primordial
ou numa outra pia de um banheiro
infectado
no fundo de um bar de um bilhar
infectado
minha digital está lá
impressa nas águas mais sujas do mundo
sim, meus caros senhores
minhas caras senhoras e senhoritas
com coxas tão nítidas
sob os vestidinhos justos
neste sol de inverno tão nítido
minha marca está lá
eu desvio
das motocicletas
ainda estou vivo
alcanço a calçada do Trianon
o parque de exuberantes sombras
de exuberantes esculturas vivas
dos bichas encostados nas árvores
fazendo pose de princesas
lá dentro nas alamedas
mas estou no entorno do parque
em plena avenida Paulista
quase correndo
meu coração é um nó na gravata
justo neste momento
em que penso em Edgard Degas
que escondeu seu gênio
em algum lugar sob as vestes
de uma bailarina
estou chegando
ao meu destino
estou em frente ao elevador
aguardo o sinal que me elevará aos céus
se fosse só isto,
Herr Doktor
(11:56 h)

roço as bordas engorduradas da revista de celebridades
balançando um dos pés
o cadarço
mais uma vez o cadarço solto
desamarrado
assim sou eu: um sujeito
com os pés sempre desamarrados
é impossível vislumbrar os joelhos da secretária
por trás da mesa
enquanto Herr Doktor não vem
folheio
uma árvore de páginas
com todas as superficialidades
em voga
enfim o Marechal-de-Campo
se apresenta
alto como uma torre
se não fosse a batina completamente alva
seria um exterminador
a me enviar para o forno dos infernos
no entanto
sorri
e passamos para o consultório
(12:04 h)

um mês
um século
um dia
um ano
que diferença faz?
tenho a eternidade toda corroendo meu crânio
um carcinoma um monstro
um caranguejo rastejando
uma constelação
um universo
de dores
compactadas
numa noz
em meu cérebro
quanto tempo quanto tempo
quanto tempo?
um mês no mais tardar
e tudo
estará resolvido
trago um livro de receitas
uma calhamaço gigantesco
enfiado nos bolsos
pelo menos a dor será devidamente embalsamada
pela morfina
quantidade sufuciente para anestesiar
a cidade
sou um homem feliz
finalmente
tenho a liberdade me desapertando o pescoço
uma gravata
atirada
à lixeira
que é o mundo
e assim caminho
em direção ao Paraíso
(12:13 h)

muito antes de atingir a Brigadeiro
volto
em direção à Augusta
não sem antes
trocar dois copeques
por duas doses de vodka
e mando duas pílulas de felicidade
goela abaixo
então retorno como um boníssimo cidadão
ao trabalho
não
nunca mais volto
ao trabalho
volto ao 34º andar
somente para recolher meus destroços
já não tenho mais as pernas
nem sapatos nem cadarços
flutuo como uma nuvem um bumerangue
um aeroplano incandescente
uma estrela absoluta
uma verdade incontestável
flutuo verdadeiramente
sobre o carpete sobre a mesa
sobre a janela do 34º andar
por onde atiro todas as cabeças que cortei
desde o primeiro dia
28 anos atrás
e lá se vão
pastas documentos arquivos monitor
e o computador voando
tudo desce como uma cusparada
senhoras senhores
lindas senhoritas
os seguranças chegam
eles me sacodem como uma pena
eu que flutuo
sou enxotado
um iluminado como eu
que também quando criança
foi enxotado
porta a fora
ainda hoje caros camaradas
irei cuspir delicadamente
em seus túmulos
(12:38 h)

gostaria de dormir
e se possível
acordar
daqui a um ano
este não é o momento exato
para suportar uma luta
de boxe
que atravessa
meus tímpanos
são pancadas superpostas
dentro dos ouvidos
ou uma colisão de astros
bem na altura da nuca
que depois sobe
até a base do crânio
a dor dispensa comentários
tanto esforço para finalmente alcançar
o lugar de onde viemos
tanto esforço
tantas leis
tanto trânsito
tantas fronteiras
atravessadas
então desço a Brigadeiro
numa inclinação que nem ela mesmo
          a avenida
me convence se sou eu
ou se é ela
assim declinada
assim declinado
sem nadinha no estômago
então declino em direção à Alameda Lorena
descendo
sempre descendo
mangas da camisa arregaçadas
um senhor distinto
          todos diriam
se não fossem os olhos alucinados
é preciso recompor a aparência
é só o que tenho
nada por dentro
nada no coração
nada
além das aparências
um banho uma comida caseira e o olhar esgarçado
de minha avozinha
em sua cadeirinha balançando
sempre balançando
assim vou eu
balançando
antes de chegar à Lorena
uma ruazinha por nome Arthur Frazão
um assobradado
tão antigo como ela
a rua
a avó
a cidade
tão antiga que ouso lembrar
o princípio de tudo
é este aqui
o lugar onde nasci
o lugar onde todos morreram
o pai
o avô
as tias, mãe dos céus
este lugar é um túmulo
todos já foram embora
mas permanecem os fantasmas
nos porta-retratos
nas paredes
sobre as cômodas
nas prateleiras
foi aqui que matei meu avô
foi aqui que superei
meu pai
estão todos mortos
menos a avozinha
menos a cozinheira
das almas deste mundo
tanto esforço para finalmente alcançar o mesmo lugar
de onde viemos
não o berço, sim o berço
tanto esforço
desde menino
acordar cedinho
eram as trevas ainda?
ainda era a noite?
de toda maneira
ainda não era o dia
e eu ia descendo
sempre descendo
de manhãzinha
para a escola primária
as calças curtas
as meias compridas
eu era feliz
tão sozinho
e não sabia
olhando para as paredes da sala
hoje vejo o que restou
de mim
e no entanto
ela me olha e vê
seu século vertiginoso
passando
sou sua tela de cinema
seu monitor de tevê
a avozinha olha pra mim
seu olhar é um fiapo de luz
um cochilo
a vida é um cochilo ligeiro
tanto esforço pra chegar
até aqui
a cozinheira traz meu prato
é ela quem cuida da minha velha avó
          quem cuidará de mim?
(13:13 h)

não era hora nenhuma
na quebrada do rio Pardo
pelas bandas de Ribeirão Preto
há mais de 50 anos
enquanto que aqui na grande cidade
são exatamente 13 horas e 13 minutos
de uma sexta-feira 13
de um mês de agosto
eu que caminho mais uma vez pela avenida
agora em direção ao parque
onde homens eternamente empurram
no alto de um monumento
um grande barco pra lugar nenhum
não era hora nenhuma
na beira do rio Pardo
no rancho do tio Zé Grota
os três primos e o velho
empurrando o grande barco
a vida a infância balançando
não era dia não era tarde
éramos quatro pescando o almoço
o fogão e a lenha esperando
e o silêncio do rio
dentro de outro silêncio
que só a infância poderia guardar
e eu aqui
quase velho
espero uma brecha
entre a multidão
de automóveis de motocicletas
contornando a rotatória
e no entanto
há uma nuvem de sombras
do outro lado
umas árvores bem cuidadas
um chão de folhas que não cansam
de fugir de suas casas
é lá que eu pretendo descansar
pode ser que assim
desapareça essa febre
essa outra multidão
um milhão de pensamentos
o almoço
o rio a avó a travessia
o tio os primos
as escadas o metrô
o café as alamedas
a garota que me abraça
enquanto o dia amanhece
o câncer
a dor correndo
quase alcançando minha alma
um tanto de sombra
outra dose de morfina
e apenas um pouco de paz
(13:17 h)

e no entanto
mesmo sem a licença dos legisladores
a tarde avança sobre o parque
e eu sou um mouro
invadindo a península
o último guerreiro
de um exército de bárbaros
definitivamente extinto
estirado sobre a grama do parque
agora e para sempre
deitado
ou por alguns minutos apenas
dependendo da vontade dos guardas
e é desta maneira
que o início da tarde
se dispersa sobre a relva
e se alastra
e toma as alamedas
as árvores
a pequena ponte
e conquista a superfície do lago
e atravessa
as paredes do auditório
escala o planetário
sobrevoa o bosque
a tarde não depende das leis
ela começa dentro de mim
um fragmento da humanidade
menos do que isto
muito menos
menos ainda
eu que me abraçava aos poderosos
eu sequer um fragmento de poesia
agora e para sempre
uma calma de calor no rosto
enfim liberto
tudo o que tenho está comigo
dentro do meu cérebro
carrego nos meus bolsos
minha passagem para a glória
e no entanto
as árvores
vistas daqui de baixo
possuem formas estranhas
numa hierarquia de galhos
que quase tocam o céu
suas folhas dançam
como pássaros
é tudo o que vejo
um pedaço de céu coalhado
de folhas que são pássaros
é tudo o que sou
um exilado de Pasárgada
deitado
agora e para sempre
dentro da tarde veloz
(13: 26 h)

embora
nem todo o conhecimento
passado presente e futuro
possa aliviar
o descontentamento
          ou seria somente uma paz
          desconhecida?
que me percorre
que atravessa o início da tarde
com o peso de uma enciclopédia
algo que me traz da Pérsia de Ciro
até este momento
traduzido em ciclos
rodopiando na mente
este humano cancro
me absolvendo dos pecados
passados presentes e futuros
estou mais aliviado
meus olhos fechados
estão abertos por dentro
portanto
repito
a vida não passa de um breve cochilo
há uma biblioteca de Babel
em transe
mas imóvel
aqui dentro
dissolvendo-se
contudo
é só desembaraçar as pálpebras
e vistos daqui de baixo
eu diria que são gigantes que me cercam
todavia
são os guardas do parque
que me observam
aos seus olhos sou um vagabundo
eu que abracei os poderosos
que respondi sim senhor ao senhor
eu que me ajoelhei frente à corporação
estou cercado
estou dizendo
me perdoem caros senhores
estou apenas imaginando poesia

e mesmo assim
pela segunda
ou terceira vez no dia
sou afastado
aos trambolhões
pancadas e pontapés
para bem longe
deste insensato mundo
(13:41 h)

é estranho pensar em você
agora que estou partindo
quase sem olhos
enquanto percorro o calçamento ensolarado
da avenida Brasil
em direção à igreja
de Nossa Senhora do Brasil
eu que não canso de me repetir
eu que sequer sei rezar
eu que suportei sem velas
sem lágrimas
sem queixas
o peso do mundo
o peso do amor
ele que inclina o eixo da terra
ele que me verga
é estranho pensar em você
agora que estou partindo
quase sem piedade por nada
quase sem lembranças
quase sem saber quem sou
quem fui
quem serei em breve
é estranho percorrer estes últimos instantes
pensando em você que partiu
quase sem preces
uma dolorosa oração bastaria
um kaddish bastaria
ou uma lembrança mais completa
daquela que você foi
de quem fomos nós
habitantes de um mesmo amor
não
aquele amor não pesava sobre nossos ombros
não caminhávamos vergados
como faço agora
em direção ao útero desta cidade gigante
que me acolhe
que me enxota
que me abrigará
novamente em seu perpétuo ventre
se eu pudesse ao menos rezar
enquanto percorro o calçamento ensolarado
nesta cálida tarde de inverno
eu quase cego
ainda assim poderia jurar
que sinto
sua luz
sua imagem sua dolorosa imagem
penetrando em meus olhos
eu poderia dizer
que chega a doer
enxergar tanto assim
(13:43 h)

entre o temor e a esperança
eis que
o frescor
o silêncio
e o sagrado
se acomodam
nesta cavidade
do meu peito
entre a ternura e o horror
tão íntimos
neste meu profundo
momento de adoração
aos aparatos imaculados
da santíssima igreja
católica apostólica romana
entre a paz e a guerra
entre exércitos de santos
entre homens armados
entre virgens armadas
com suas palavras únicas
e verdadeiras
contemplo
o esplendor sacrossanto
da conciliação
do temor com a esperança
da crença do eterno com a descrença
de tudo aquilo que é finito
tanta prepotência
o domo do templo desdobra a tua face
senhor
tanta arrogância
num altar onde não cabemos
nós
pecadores
seres sem misericórdia
sem divindade
nós que aterrorizamos
a nós mesmos
que torturamos
a nós mesmos
que odiamos
que cavamos este vale
com nossas mãos impuras
entre o temor e a esperança
me deixo levar por todas as farsas
as mentiras
a crueldade
da sua santíssima igreja
católica apostólica romana
eis que
nada se detém aqui dentro
no centro do meu peito
eu que em nada creio
assim mesmo agradeço em nome
de todos os homens
impiedosamente esquecidos ou massacrados
para que a sua glória
permanecesse
eu agradeço
pela graça destes momentos
em sua sagrada nave
pelo frescor
pelo descanso
e pelo silêncio
(14:01 h)

estou falando com você
cidade
quase sem pudores
até parece
que minha voz é alcançada apenas por mim
e por aquela árvore solitária
e verdadeira
ali
do outro lado
de fronte ampla
último espetáculo da natureza
o inverno arde
e no entanto
devo ser o único caminhante
a percorrer suas veias
abertas
nesta tarde

já estive aqui tantas vezes
e já não consigo escrever
a dor desceu até os ombros
por isso
esta pronúncia silenciosa
por isso
este jejum
esta ternura
esta cusparada
já não escrevo mais suas memórias
entretanto
conto cada minuto deste dia doentio
e seguirei contando
é tudo o que me resta
esse é o trabalho, essa é a fadiga
estou falando com você
cidade
e sequer sei nomeá-la
mas não importa
nada mais importa
trago as mãos nos bolsos
e entre o polegar e o indicador
aperto uma orgia singular
eu estou desperto
à margem de um mundo
e no centro de outro
cobre-me a sombra da grande conspiração
corporativa
estou transpirando farrapos
num ponto de ônibus
e a vida segue
em seu eterno congestionamento
homens e mulheres
abrigados em seus confortáveis escafandros
passam
param
tornam a passar
sou finalmente prisioneiro do ar que respiro
nesta cidade sem janelas
estou falando com você
meu amor
através dos homens que me assombram
já não há mãos dadas no mundo
somos muitos
e estamos sós
(14:14 h)

uma das coisas
que devo lembrar
sempre
é que não criei
família
não tenho filhos
amei
tantas mulheres
tanto
quanto pude
e ao final
não amei nenhuma
uma das coisas
que devo sempre lembrar
é que não desejei
ser melhor
do que fui
também
não devo esquecer
que não sei
talvez nunca saiba
de onde saem
essas palavras
meu coração
nunca foi
tão bondoso e louco
como deveria
vivi me escondendo
atrás do trabalho
mas isto já não interessa
é que talvez não exista
nada melhor
pra pensar
ou então
quem sabe
eu possa relembrar
o nome dela
ela que ficou
encolhida
tão cedo
em meu leito
murmurando
sonhos
incompletos
murmurando
adeus
com seus olhos
lindos
fechados
e as maçãs do rosto
as faces rosadas
de tanto amor
e descanso
mas agora
dentro deste ônibus
todos me olham
como se eu entoasse
um cântico
profano
quase gritando
sim
eu estou cantando
bem alto
quase rouco
e é como se eu confessasse
a todos
que jamais fui tão jovem
e sóbrio
como eles
que me olham
assustados
enquanto sobe o ônibus
mais uma vez
pela rua da minha juventude
eu que também já fui assim
alto e belo
como tu
eu que também já quis render
o mundo
e conquistá-lo
à minha maneira
mas desisti
antes mesmo de começar
eis que
as pessoas sobem e descem
o tempo todo
eis que
está chegando
a minha hora
estou chegando
ao lugar certo
só não deixarei de cantar
intimamente
não
não vou parar
nunca mais
mesmo depois
muito depois
eu nunca mais
esquecerei
deste dia
(14:30)

pois então
eu mesmo me pergunto
deveria
ter abandonado
a carreira
o cutelo
o deslumbre
o poder
os rapapés
a montanha de dinheiro
os dias de servidão
e de luxúria
a quietude
pra não dizer
o vácuo
dos finais de semana?
pois então me pergunto
poderia ter escrito
poemas incríveis
poderia ter estudado
lido mais
poderia ter tido amigos?
          tudo isto
          neste tempo
          em que escolho
          uma calça
          uma camisa
          a roupa íntima
          e reparo
          na profundidade
          tátil
          das vendedoras
          tão meninas
          e observo
          suas coxas
          suas nádegas
          seus seios
          e percebo
          a suavidade da juventude
          pousada
          na tez
          nos braços
          nos pézinhos
          – velho depravado
          só lhe falta o balcão
          o cinzeiro
          e o copo de uísque
poderia ter ouvido mais
as pessoas?
e se houvesse o dom
sim
eu seria além e acima de tudo
algo como um poeta
mesmo que isso me levasse
a perder o juízo
pois então eu sigo
rua Augusta acima
a sacola na mão
balançando
sempre balançando
as roupas novas
tanto dinheiro no bolso
sem saber responder
a mim mesmo
àquela pergunta feita
num verso
faz muito tempo
pelo melhor amigo
acaso choraste no enterro de teu pai?
sem conseguir lembrar
sem conseguir responder
ajeito os fones no ouvido
como canta essa menina
agora você sabe
dizem que ela
é louquinha de tudo
(14:56 h)

faço de conta
que um bicho-preguiça
me abraça
mesmo depois de romper
com as recomendações
médicas
de somente consumir um comprimido
de morfina
a cada seis horas
ora, eu os tomo a cada cinco minutos!
portanto penso
em minha sagrada mãezinha
que sempre diz
não beba muito
não use drogas, meu filho,
volte cedo pra casa
– só que a dor, mãezinha
não cessa
e pelo menos um bicho-preguiça
me acolhe
          me acolheria meu avozinho?
          ele que foi
          exilado
          como um pássaro
          de seu próprio ninho
          ele que era exatamente sincero
          com todas as suas mentiras?
penso que há uma penumbra
clara
que me traz
estas recordações
de menino
          fui com ele
          através do pântano
          e do continente
          através da cordilheira
          ele que tinha todos os antepassados
          escondidos
          num chaveiro
          ou
          dentro da carteira
          em que lugar ele trazia
          tamanhas e enganosas covardias
          estariam todas elas escondidas
          sob as palmilhas
          dos sapatos
          ou costuradas ao forro
          da mais oculta algibeira?
          numa bendita noite
          entre uma ferrovia e outra
          entre um hotel
          e outro
          entre sua memória
          gasta
          e sua absoluta vida
          onde se deu
          seu primeiro enfarte?
          foi ele quem me trouxe
          até aqui
          meu avô foi um cão
          perdido
          em todas as ruas
          um homem
          sem guarda-chuvas
          ele foi uma ilha
          aquele exato modelo
          cartografado
          de ilha
          de onde todos fugimos
          mesmo antes
          muito
          antes
          de existirmos
e ainda assim um bicho-preguiça
se esconde
à minha volta
não é um abraço
é uma carapaça
é uma sensatez
que o cansaço traz
deveria haver
um lugar com cadeiras
nesta calçada
mesmo algo que fosse
um suave sussurro
de brisa
mesmo que fosse uma tempestade
algo que diminuísse a sede
pois
é
aqui mesmo
que me sento
e peço um copo gelado
uma mistura de limão
de vodka com açúcar
um pouquinho de morfina
uma mistura de solidão
e companhia
até ver passar
a tropa de choque
da humanidade
perdida
no meio da tarde
um sujeito como eu
filho de quem sou
neto de quem fui
o bicho-preguiça se espalha
ao meu redor
estou dentro
do meu pensamento
e
só posso pensar
que não haverá
amanhã
algum
(15:00 h)

não há lua neste lugar
em compensação
o passado e o futuro
estão contidos
nesta tarde
neste cigarro
neste copo
neste inacabado segundo
          ah! gostaria que houvesse a lua
          embriagando a paisagem
          e no entanto
          não se pode querer tudo
sim, esta mesma rua
por onde eu subia e descia
quase que por toda uma vida
algumas vezes com a realidade
brutal
tocando
ali
onde as asas nasciam
outras vezes
com uma doce lembrança
aninhada
tola
e profunda
ou ainda mesmo
naquele outro tempo
em que me agarrei
ao resplendor do absinto
          ele sim completava a paisagem
          ele sim me embalava
          e trazia
          uma quietude de prata
sim, esta mesma rua
já me viu passar
quase que inteiramente vivo
(15:01 h)

posso compreender
imediatamente
a dificuldade que existe
em querer enxergar
a mim mesmo por inteiro
          nem que seja
          por um minuto
isto posto
começo a vasculhar
a ponta dos pés
os sapatos
os cadarços desamarrados
a bainha das calças
e vou subindo
          todos sabem
          que acima disso
          há tudo
          menos a compreensão
          do que somos
e há a perna
o joelho a coxa a virilha
          já não sou tão magro
          como desejaria
          como desejei ser
          um rapaz
          eternamente alto belo
          e esguio
e de repente
chego
ao alto do cucuruto
coisa que não vejo
mas imagino
os cabelos curtos
          bem sei
          que há cinzas neles
e os meus óculos
          bem vejo a moldura
          que envolve o mundo
é tão fácil perceber
a maneira como se esgota
este caudaloso
minuto
é tão fácil perceber
o queixo encostado ao peito
          mais uma reação
          adversa
          da mistura
          da solidão
          com a companhia
mesmo assim
num salto
chamo o garçom e pago a conta
atravesso a Luís Coelho
entro na farmácia
e perto de gritar
          num cumprimento
          alegre
          substancial
          e ao mesmo tempo vazio
digo olá Estevez
ele que sempre me vem em socorro
com algo que me acorda
bravamente
como a anfetamina
          algo que se parece
          com um exterior mais ativo
          mais forte
          que a energia do sol
          algo mais vigoroso
          que o rugido das ruas
é tão fácil
dar tratos à bola
e é desse modo que ficamos quites
          Adeus ó Estevez
          é tudo o que eu digo
atravessando a Augusta
ignoro a sinalização
e me dirijo à tabacaria
(15:28 h)


praticamente quites com tudo
alcanço o outro lado da rua
a tabacaria me recebe
         não seu dono
         que já figura num passado
         tão distante
         e sem sorrisos
         onde palavras valiam mais
         muito mais
         do que meros artifícios
já tão mudada a tabacaria
tão cheia de novidades
jornais e revistas coloridas
frascos rótulos etiquetas
ainda me detenho naquele tempo
quando tudo era mais puro
         dois quartilhos de malte de milho
         duas carteiras de cigarros
         do mais dourado tabaco
         sem um pingo de mistura
         é tudo o que peço
         é tudo o que pago
e agora com um silêncio cravado
nas prateleiras e nas vitrines
o ármario trancado a chaves
com os cachimbos
as canetas-tinteiro
um velho mundo
totalmente desaparecido
estou desaparecendo junto
e sequer me despeço do mundo
estaciono na calçada
me encosto à sombra do poste
tudo corre num lampejo
ônibus cheios
tantas vidas miúdas
tantos medos
tantos projetos diluídos
sinto um frio invadindo
os sapatos e as meias
cheias de suor de cansaço
e os pés sem nunhum estímulo
subo o olhar para além do poste
do outro lado da rua
placas signos logotipos
um emaranhado de fios
desaparecendo
estou desaparecendo
sou um pombo-correio
bicando o meio-fio
é impossível prosseguir
mesmo possuindo
tudo aquilo que preciso
(15:32 h)

toda história começa agora
no justo instante
em que o deus das pequenas coisas
arrebenta meus tímpanos
e grita
          “sem minha luz não és nada
          sem minha mão não há alívio
          sem meu olhar não há piedade
          olhe para o meu amor
          só ele te levanta
          sou tua carícia e teu êxtase
          sou a cura para tua dor”
          e de repente
          ele já não grita
toda a história agora recomeça
sou minha própria obra
em meio à devastação
tenho os pés assentados
em outros planos
em outra dimensão
em outra ordem
eu deveria ver estrelas
no meio da tarde
posto que não são os gritos
que me reanimam
são relâmpagos
é um rio de relâmpagos
infiltrado na corrente sanguinea
e um caudoloso enigma
escorrendo dos ouvidos
         toda a tarde tem sua cor
         própria
         nesta inventou-se o vermelho
         – a mansidão do azul
         e a expressão do verde
         não estão aqui –
         só restou a rubra porção
         de vida
         e num curto alheamento
         ela se apresenta inteira
olho para minhas mãos
o sangue sem dor está ali
marcando a tarde
esta tarde em que o deus
das pequenas coisas
se apresentou luxuosamente
a mim
toda história começa agora
quando os passageiros
nesta via sem saída
me olham
amedrontados
          pai nosso que estais
          sobre os telhados
          sobre as antenas
          pairando acima das cúpulas
          planando como um helicóptero
          vejo teu coração
          meu pai
          teu coração é uma pomba
          minha adoração
          meu ódio
          minha culpa
          minha máxima
          expressão de dúvida
          estou acima
          estou abaixo
          é tão difícil
          continuar
          mas mesmo assim
          livrai-me de todo o mal
é tudo pura invenção
eu diria mesmo um delírio
nenhum dos transeuntes me olha
nenhum deles sequer
nada no mundo de mim se apercebe
não há rio
não há sangue
não há milagre qualquer
é apenas o efeito
de uma hóstia
uma espécie de benção
em drágeas
no céu da minha boca
          amém
(15:36 h)

há certo encanto neste mundo
mesmo que ele seja visto
por alguém como eu
encostado num poste
ao pé de uma parede sem porta
embora haja
em outras paredes
outras portas
e em outros edifícios
janelas abertas
          – deixem
          que outras almas
          entrem, é o que peço
e por trás delas
quietos e impacientes
tolos e gênios
grandiosos e pequenos
seres suaves contagiados
pela ríspida vida
          – eu peço, deixem
          que outras inspirações
          trafeguem
          por dentro de suas almas

quantas vidas cabem
num só dia?
quantas vidas
há dentro de mim?
quantas mortes?
quantas imprecações?
quanto consolo?
há pacificação
nesta hora?
existe um desespero
escondido?
          os gestos estão todos lá
          atrás de cada soleira
          guardados nas gavetas
          trancados na memória
          sob lençóis macios
          dobrados numa outra tarde
          tão parecida com esta
          e a questão humana
          e os gestos humanos
          estão lá
          fechados
          atrás de janelas abertas

embora a tarde
seja semelhante
a outras tão distantes
guardo a impressão
do nascimento de tudo
neste exato segundo
          são 15:39:45
          ao sul do equador
          são 15:39:58
          nesta alameda
          sob a luz dos trópicos
o absoluto renasce
e é deste modo
que tudo começa
a fazer sentido
(15:41 h)

se bem
que
imaginando melhor
se o absoluto
renasce
nunca saberei
em que estado
             se sólido
             se étereo
             se fluido
ou com que veste
ele se apresenta
ou como
ele se traduz
e se o renascer ocorre
deve ser
de um jeito frio
             como um fio
             de suor
             descendo pela nuca
ou mesmo
como um terremoto
             e tudo o que ele tem
             de absoluto
surgindo das plantas
das minhas mãos
frias
ou
como se fosse
algo que estanca
exatamente no centro
que existe
entre o torpor
do ópio
e a euforia
da anfetamina

assim avanço
pela beira da calçada
eu e minha
obsessão
em afastar o medo
             ele sim
             real
             e absoluto

assim desço a alameda
despertando
da minha própria e vulgar insegurança
até chegar num lugar mais sombrio
como por exemplo
este assobradado
             com um aviso
             em outro idioma
             por cima da porta
             de entrada:
             apenas
             para
             homens
este mesmo lugar
em que penetro
por uma longa passagem
e ao final
uma dúzia e meia de cabeças
femininas
são moças
minimamente trajadas
sentadas
ao redor da sala
uma
delas
será
por certo
minha
agradável companhia
(15:43 h)

finalmente
quando as palavras vão embora
        sem tempo
        de dizer adeus
        ao pensamento
o que resta
são essas mãos
ressuscitando suavemente
a pele das têmporas
a nuca
os ombros
         não
         não toque meu sexo
         não
         não tocarei o seu
         continue
         promovendo o renascimento
         desça
         até este instante
         até este nódulo
         até este universo corroído
agora sei
que o meu corpo é só um universo
corroído
         não diga seu nome
         apenas espalhe o óleo da purificação
         sobre meus ombros
         e continue
agora posso ao menos imaginar
onde estou
e também
compreender
que a vida
e o merecimento do descanso
têm seu preço
como afinal
tudo tem seu preço
o universo quieto em seu exagero
tem seu preço
o descanso e o abandono
têm seu preço
          ao menos uma vez
          peço obediência
          e a partir deste instante
          seu nome
          será silêncio
          e suas mãos
          trarão o silêncio
          e ele me levará
          até um lugar
          onde só exista
          a única maneira
          de perceber
          meu próprio
          renascimento
(16:19 h)

o inverno torna-se quase suportável
          eis a terna face da tarde
          eis um homem que caminha
          em seu renascimento
nem sei por que insisto
em pensar
o mesmo
repetidamente
          ou nem penso
          pode ser algo
          que escapa
          do meu antigo medo
mas não me engano
todos têm a obrigação de morrer
num certo momento
          desde que não seja agora
          sob este inverno
          que se desmente
nem sei por que insisto em continuar
se renascer é isto
um arremedo
um deslocamento
a velha inadequação
atravessando a todos os que vejo
ao final do corredor
ao final de uma hora
de um dia
de uma vida
uma puta chicoteando meus ombros
suavemente
há pouco
um cochilo
um descanso
talvez um sonho
que não conto
nem a mim mesmo
          eis um homem renascido
          em seu próprio esquecimento

então ganho as ruas novamente
          saudável
          posso até dizer
          bem disposto
          bem apessoado
          após o banho
          uma ducha violenta
          e comovente
          e a roupa nova
          e a pele nova
          e os sentidos
          reluzentes
enquanto
isto
na alameda
todos continuam os mesmos
desconhecidos
de sempre
seres opacos
trafegando
trafegando
num ritmo
inclemente

mais um passo
e eis que ressurge
o novo homem
ou seja
o mesmo
homem
de sempre
subindo
novamente
e
mais uma vez ainda
subindo e subindo
a alameda
um homem
com seu pouco tempo de vida
com um caderno de anotações
encostado ao peito
onde se encontra
o esboço
de um outro homem
marcado
para morrer
brevemente
e no entanto
e a propósito
um homem
disponível
que bem poderia estar
em qualquer outro lugar
          numa aventura noturna
          inventando novas criaturas
          como companhia
          ou combalido
          revisitando
          velhos comparsas
          assassinos
          ou embarcando
          num comboio
          atrás do demônio
          correndo
          atrás do ouro
          numa tarde como esta
          mas tão diferente
          num tempo reinventado
          mas tão parecido com este
eis o novo homem
um esboço
um personagem
marcado
num caderno de anotações
uma escrita cifrada
que insiste
em permanecer
(16:23 h)

mesmo que permaneça
eternamente
na caderneta
esse esboço
de um novo homem
tão comum
devo dizer
que ele enxerga
novas arestas
em tudo

ele me diz
          ou eu mesmo
          imagino
que todas as coisas
trazem dentro delas
outras coisas
completamente
imperceptíveis
          ele diz que
          um peixe na areia
          guarda dois diamantes
          nos olhos

          e que
          certas infâncias
          trazem o universo
          para mais perto

          e que
          um camundongo
          dentro de uma caixa miúda
          é um falcão dourado

          e que
          o olhar do símio
          atrás das grades
          é o meu próprio olhar

          e que
          os sete estágios da dor
          convivem
          num mesmo estágio

          e que
          o útero de todas as mães
          é o cálice
          da eternidade

          e diz também que
          o mapa das ruas
          da minha cidade
          mora na palma da minha mão
é sobre este homem que escrevo
a caderneta
no peito
colada
ao peito

e assim percorro a cidade
olhando para minhas mãos
e o sol
e sua dor
de sol
me acaricia
e me atravessa
já não tenho certeza
se sou
um esboço
um personagem
um novo homem
um homem velho
mas sei que estou
a caminho do cemitério
à procura
da lápide
de meu pai
(17:18 h)

é tão triste isto
encontrar
o leito
definitivo
daquele que me trouxe
para cima de tudo
e vê-lo assim
coberto
de folhas
um céu de folhas
e a mínima relva
que o envolve
como uma coroa
são tão tristes
as folhas
que trepidam
sobre seu túmulo
e o abandono
o seu triste abandono
e a impossível tarefa
de dizer
eu te amo
eu sempre
te amei
sem que ao menos
ele
me ouça
          estou aqui
          nasci de seu centro
          tenho boa parte
          de você intacta
          estou aqui
          pedindo
          que me aceite
          outra vez
          como seu filho
enquanto o inverno
escorre
quieto
uma veia azul
escorre
do firmamento
a tarde
está quase ausente
e a noite
que nasce
entra
numa cavidade
dolorida
do meu peito
estou quieto
tenho lágrimas
quietas
meu pai,
eu
estou
sentado
sobre
a pedra
do seu
túmulo
(17:23 h)

portanto
estou sentado
sobre seu túmulo
e há o passeio
do meu olhar
sobre o abismo
da cidade
          torres
          torres
          tão baixas
          sombras
          sombras
          descendo
          e subindo
          sobre o abismo
          da cidade
eis a glória
devastada

eis a canção
do último homem
ecoando
sobre o abismo

eis
o silêncio
afundando

eis
o abismo
(17:27 h)

e pensar que tudo
pode ser
pura imaginação
          a dor
          nas têmporas
          o tempo
          que anoitece
          e o próprio abismo

nem sei por que insisto
em voltar à infância
ao bom menino
magro
um pouco gago
um tanto aparvalhado
escalando as paredes
que separavam
o quintal
do jardim interno
um bom menino
escalando a infância
subindo pelas paredes
até o telhado
manchando a branquidão
dos muros
enquanto
minha mãe reclamava
          ainda ouço
          sua voz
          mãe
          mais jovem
          da que ouço agora
e reclamava
das manchas
das minhas patas
como dizia
você
meu pai
          ainda ouço
          sua voz
          tão nítida
          como eram nítidas
          as manchas
          nas paredes
          naquele tempo
          como ouço
          agora
          sua voz
          flutuando
          sobre
          o abismo

e pensar
que ainda assim insisto
em voltar ao bom menino
que desejava
ser pássaro
          é o que eu lembro
          ao mesmo tempo
          em que procuro
          no mais profundo
          escuro
          a saída
          deste campo santo
          deste abismo sagrado
          até que me descubro
          em frente
          ao portão trancado
(17:34 h)

não é tão fácil explicar
como me tornei pássaro
como ultrapassei o portal
mesmo porque
já sou um outro
um camundongo
um cão
e o que quer dizer isso?
          devo ter lembrado
          no espaço
          de um curto voo
          das aventuras
          de Mackandal
          quando ele usava
          das artes da licantropia
          para se ausentar
          das vistas desumanas
          dos caçadores de escravos
          faz tanto tempo
          na Ilha de São Domingos
mas o que quer dizer isso?
e que diferença faz
ser falcão
camundongo
ou cão perdido?
desde que seja
algo que me afaste
da pátria dos desaparecidos
desde que seja
algo que corra
rente à parede
que separa o reino deste mundo
          o dos bichos
          o dos homens
          o dos vivos
daquele outro mundo
sem reino
sem reinado
daquele mundo
inteiro
construído
de abismo
(18:08 h)

devo ser eu mesmo aquele sujeito que vem por ali
saltando o muro escorregando até a calçada
como um rato com sua sombra retorcida
pela própria velocidade das patas
correndo pelo canto das paredes
atravessando mais uma vez a avenida sem olhar
para os lados sem olhar para as motocicletas
para os automóveis sem olhar para o caminhão
que coleta aquilo que é a sobra do que somos
devo ser eu aqui debruçado sobre uma outra avenida
sob o vão do majestoso palácio das artes
essa colossal caixa feita de pó de cimento de vidro
essa obra em suspenso como uma respiração
como a minha própria respiração
pendurada sobre a avenida nove de julho
entupida por um interminável cortejo de carruagens
a avenida engarrafada por infinitas tartarugas
iluminadas pela frente e por trás iluminadas
pela cor dos faróis pela dor clara dos faróis
já são quase um milhão delas uma a outra atadas
como um cintilante cordão quase imóvel
tartarugas penetrando uma a uma penetrando
no túnel cavado muito abaixo dos meus pés
devo ser eu mesmo aquele outro sujeito que vem por ali
escavando e atravessando o ar irrespirável
por cima de outro viaduto que tem por baixo
mais uma fieira de animais inomináveis
cada um deles soprando uma nota musical
cada um deles que somado ao outro vão compondo
uma sinuosa melodia uma sinfonia jamais ouvida
mas que se desdobra e que se desloca desde ali
sob os pés daquele outro que também sou eu
que tropeça na ranhura da calçada
daquele outro que sabe percebe intui
que abaixo de seus pés estão vastas obras
impressas nas paredes do fundo do viaduto
devo ser eu aqui mesmo sob o vão do museu
à espera
à minha espera
até que eu chegue
e toque com a ponta de um dos dedos
meu ombro
minhas costas
até que eu me volte e encontre a mim mesmo
me oferecendo uma caixa
uma diminuta caixa
onde caberão todos os meus pertences
e também todas as misérias do mundo
(18:32 h)

e recita:
Noite! Já vi demais a pupila dos homens!
e deixa em minhas mãos a minúscula caixa
e desaparece
ele
e desapareço
eu
para dentro da pupila dos homens
e quando
imediatamente
me volto
vejo o brilho milenar de todos os olhares
no centro
da palma
da minha mão
e quando
destampo a caixinha
um a um
os meus pertences por ela desaparecem
o bloco de anotações
com o esboço
do homem desesperado
o que restou dos quartilhos
          apenas um ainda pela metade
o que restou das carteiras
          de tabaco dourado
as pílulas todas as pílulas
          as que despertam e as que adormecem
e as dores
estão sendo sugadas
a noite
a tempestade dos homens está sendo sugada
os relâmpagos estão sendo sugados
as músicas da minha caixinha de músicas
os fones de ouvido
os documentos
os cartões de crédito
até a apólice de seguro
está sendo sugada
menos o meu dinheiro
o calhamaço de notas
que conservo nos bolsos
tampo a caixinha
e a escondo na palma da mão
agora sim
posso prosseguir
(18:53 h)

toda escrita é coisa suja
penso
sem sequer saber
de onde tiro
tudo isso
portanto
nada escrevo
portanto
apenas imagino
os dedos sujos a chiqueiro
a palma da mão iluminada
a mente doentia
vertendo líquido
sujo
          imagino
          que a ciência
          mate mais do que as doenças
          por isso
          não tratarei meu câncer
          permito
          apenas
          que a natureza siga
          sua sina
          destrutiva
assim
apenas imagino
que os últimos dias correrão
sujos
continuarão mortos
os dias
continuarei vivo
neste mundo de mortos
é o que imagino
no mesmo momento
em que crianças correm pelo vão
do museu magnífico
no momento
em que crianças correm
para o fim
da vida
eu sigo
mansamente
para seu centro
como se você
cidade
fosse apenas
um vulto
(19:34 h)

na ponta do trampolim
ganho impulso
o ar abafado
o alarido abaixo
das crianças com suas bóias
ajustadas aos braços
touquinhas elásticas
amarelas
verdes
azuis
e as mamães sentadas
à espera
do futuro
          elas estão vendo
          como avança
          rápido
          o futuro
ganho impulso
outra vez
e as mamães sentadinhas
na borda da piscina
fingindo-se perfeitas
os seios perfeitamente
modelados
mal escondidos
elas trocam entre si
a última novidade
em matéria de esmalte
para as unhas
enquanto as vejo
em outro tempo
sozinhas
na cozinha
os filhos estão fora
na escola
elas olham para o espaço
acima da cidade
e esperam
que os bolinhos de chuva
esfriem
no parapeito
da janela da cozinha
ganho impulso
mais uma vez
o trampolim
arremessa
o que me resta
eu também
estou sozinho
(19:35 h)

então é essa a aventura humana?
tanto esforço para chegar até aqui
tanta espera
por um acontecimento extraordinário
e quando isto aparece
é o anúncio da própria morte
mas afinal algo excepcional surge
aqui dentro não lá fora
não em volta
não uma Cartago aniquilada
não um bombardeio em La Moneda
não um exército inteiro
de moleques chacinados na praia
não a fome os bichos
os orangotangos enjaulados
não as crianças brincando
na beira de rios de vômito
em bairros maiores do que o mundo
chapinhando
sobre excrementos
não a marcha dos fantasmas
saídos da névoa de napalm
não golfinhos cercados no canto da enseada
não Hiroshima
não todos eles mortos a pauladas
não todos nós
como uma manada uniforme
avançado no mesmo compasso
desaparecendo através da poeira
levantada em Dresden
não lá em cima não lá mais abaixo
mas aqui dentro
que vou afundando
até tocar os ladrilhos
dando mais uma braçada
mais um impulso primordial
gosto de testar meu fôlego
até o limite
sempre gostei de vir aqui embaixo
olhar para cima
e encontrar as perninhas das crianças
debatendo-se
quase na superfície
lá longe separadas por um cordão
de pequenas bóias
apartadas deste mundo real
e mesmo assim imaginário
onde vivemos nós
adultos
mais inseguros que elas
mais indefesos que animaizinhos
disfarçando
fingindo
com nossas máscaras amarradas
gosto disto
de me afastar aos poucos da miséria
da lembrança das perdas
eu mesmo que estou me perdendo
falta pouco
dou impulso com os dois pés no fundo
e volto à superfície
(20:07 h)

tampouco
me lembro por completo
mas deve ter sido
meio século atrás
aqui
neste mesmo lugar
como a velha canção
dizia
tampouco lembro quem éramos
mas éramos
três ou quatro meninos
todos recendendo a cloro
da piscina
e as orelhas úmidas
e o frescor percorrendo o corpo
depois da ducha fria
éramos garotos
aos seis, sete anos
e eu esperava a moça
que me levaria pra casa
tampouco
lembro seu nome
talvez fosse a Clarice ou a Lourdes ou a Luzia
tantas vezes tantas vidas me encontraram
me conduziram
tantas vezes tantas vidas
me arrastaram

          venha
          lembrança
          venha
          memória
          ou que outro nome
          você tenha
          arraste-se
          para mais perto
          ou afaste-se
          por completo
          desapareça
          mas não continue
          no meio do caminho

e sob o triângulo
vermelho
o ípsilon
azul marinho
permaneço
é nele que se inscreve
o nome
da minha infância
          poucas palavras
          calor
          frio
          nome
          cidade
          ternura
          olhos
          dedos
          me ressuscitam
agora lembro
definitivamente
que a ternura escorria
pela ponta dos seus dedos
logo depois de saltar
daquele seu olhar
daquele seu abrigo

e sob o triângulo vermelho
ainda insisto
nele se inscreve o mesmo nome
Associação Cristã de Moços
neste mesmo lugar
nesta mesma rua
Nestor Pestana
havia uma igreja ali
do outro lado
para onde os adultos
apontavam
e diziam
ouça a quietude
veja as imagens mortas
perceba
o aroma de vela
e o sol delirava
através dos vitrais
          hoje eu sei
          era o sol
          que me conduzia

agora
meus cabelos flutuam
atravesso a rua
dona do vento
a rua me contorna
insinua-se
me envolve
me aperta
me despreza
dona da minha infância
volte
fique aqui comigo
mas não adianta pedir
ela me abandona
justamente
quando dobro a esquina
(20:18h)

têm vezes
que dobrar uma esquina
é como abandonar um pesadelo
e penetrar em outro
           desta vez
no tempo de apenas dois passos
a lembrança
foi parar no seu merecido lugar
de origem
          desta vez
a realidade se manifestou
com um comentário certeiro:
todos os loucos se parecem
foi o que ouvi
de um dos dois ou três sujeitos
encostados no automóvel
estacionado do outro lado da rua
vida louca, pensei
bem alto
e eles me encararam
e seguiram com os olhos
meus passos de fantasma louco
que persegue a si mesmo
dentro do seu venerado labirinto
siga, pensei
siga sua própria sombra
agarre-se firmemente ao próprio medo
considere seu triste olhar
de animal adestrado
siga com as mãos distraídas
seu corpo inteiro ainda lateja
siga em frente
porque vem por ali
ao seu encontro
o homem livre
aquele de barbas longas cabelos longos
roupas sujas dedos sujos
unhas longas unhas sujas
encravadas na sacaria
o homem livre, pensei
é aquele que traz às costas
a humanidade inteira
sem lamentar o infortúnio
(20:42 h)

além de mim
todos são fantasmas
principalmente
aqueles que se esbarram
inconscientes
nas calçadas
ou o grupo de rapazes
no meio da praça
rodeados pela ilusão
que a juventude sempre traz
em seu íntimo
ou o porteiro insone
parado
apenas parado
com seu cansado par de olhos
estendidos
sobre o nada
ou mesmo
aqueles outros
os que esperam
pela compra de ingressos
na triste fila
do teatro
do absurdo
e eu vejo a todos
como se visse
a mim mesmo
um elemento
leve
quase transparente
subindo
descendo
com suavidade
parece até
que estou nadando
no vazio
(21:59 h)

pílulas,
bastam duas pílulas
e o mundo inteiro
outra vez
se materializa
assim como
lentamente
lentamente
o ingresso
entre os dedos
a platéia
e as poltronas
se materializam
espero
que a peça teatral
Meu Coração Ficou na Infância
se materialize
não há nada
tão grandioso
como a infância, penso
enquanto aguardo
que as luzes
e a música
despontem
e o inferno da imaginação
dos outros
sobre o tablado
também se materialize

há um cenário
de cordas
penduradas
desde o alto
até esparramarem-se
no chão
cordas, penso
centenas delas
formando uma cortina
em semicírculo
que toma toda a largura do palco
há bonecas de brinquedo
milhares delas
pendendo
como que enforcadas
ou agarradas
às cordas
à maneira dos malabaristas
há o tom progressivo
de uma ciranda de roda
e a luz sobre o palco
focaliza outras cordas
mais grossas ainda
de onde descem
até o chão
dezenas
de atores
com seus corpos enrolados
como caracóis
quando então vem o redemoinho
de palavras de toadas de grunhidos
de estampidos de tiros
de tilintar de taças
de acessos de tosse
de barulho de descarrilhamento
de freios corrompendo os trilhos
de lamúria de queixa infantil
e faróis
e incêndios
e as sirenes
e os prédios
ou as sombras incendiadas
dos prédios
que vão nascendo
por trás das cordas
das bonecas
e dos artistas
que se desdobram
lentamente
lentamente
até ficarem erectos
melhor dizer
crescidos
quando ao final
atados
a um silêncio
de chumbo
assumem postura de adultos
e não mais de fetos
encolhidos no útero
(23:13 h)

e assim fomos saindo
um a um
          senhoras e senhores
os espectadores
estarrecidos
          viemos de um mundo
          de um outro mundo, penso
          completamente esquecido
e assim mesmo
saindo
quase toco
as dobras descoloridas
das mentes dos transeuntes
quase encosto na brisa
na noite da praça Roosevelt
somos todos atores
saindo
saindo
lentamente
da atmosfera
da imaginação
dos inventores
disso a que chamo
de nosso
insensato
terrível
e dolorido
mundo
adulto