(11:38 h)

se fosse só isto,
decepar uma dúzia de cabeças antes do meio-dia
se não fosse apenas meu trabalho
aquele ao qual me debruço
sistematicamente
sem um soluço
apesar da caixa de lenços de papel
sempre a mão para os eventuais
e dispensáveis funcionários
de tão magnífica empresa
aquela a qual represento
como carrasco
diariamente
com dedicação e orgulho
se fosse só isto,
o telefonema
e a secretária do consultório oncológico
confirmando o horário
sim, o resultado dos exames chegaram
e o Doutor Adolfo Friedhenreich
urge em encontrar-me
logo após o meio-dia
então saio nas ruas sem o paletó
e nada alojado ao estômago
além do pão sagrado da manhã
se fosse só isto,
as inumeráveis xícaras de café e o sopro
o sopro dos cigarros
desajeitadamente à janela do último andar
entre uma e outra cabeça cortada
mas
a avenida ferve em sua luz de inverno
a gente toda passa sem se recordar
quem fui
quem serei
eu que sou
um estrangeiro em qualquer lugar
eu que tenho minha impressão digital
indelével nas águas
das pias das igrejas das catedrais
deve ter sido
naquela benção primordial
ou numa outra pia de um banheiro
infectado
no fundo de um bar de um bilhar
infectado
minha digital está lá
impressa nas águas mais sujas do mundo
sim, meus caros senhores
minhas caras senhoras e senhoritas
com coxas tão nítidas
sob os vestidinhos justos
neste sol de inverno tão nítido
minha marca está lá
eu desvio
das motocicletas
ainda estou vivo
alcanço a calçada do Trianon
o parque de exuberantes sombras
de exuberantes esculturas vivas
dos bichas encostados nas árvores
fazendo pose de princesas
lá dentro nas alamedas
mas estou no entorno do parque
em plena avenida Paulista
quase correndo
meu coração é um nó na gravata
justo neste momento
em que penso em Edgard Degas
que escondeu seu gênio
em algum lugar sob as vestes
de uma bailarina
estou chegando
ao meu destino
estou em frente ao elevador
aguardo o sinal que me elevará aos céus
se fosse só isto,
Herr Doktor