(03:54 h)

          devo ter adormecido
          devo ter sonhado
          sentado
          ao lado do homem livre
e você vinha com o formato das águas
saía das águas
como que abençoando
a todos
e já ia tomando o feitio de gente
gostaria de sonhar que você vinha
de um outro modo
que trafegava
entre as estações
que baldeava
entre cidades antigas
como aquelas por onde os primitivos
mascates
corriam
de casa em casa
no meio das estações
havia uma educada maneira de viver
naquele tempo
tirava-se o chapéu
em cumprimento
as calçadas já iam se iluminando
mesmo
antes
do final
das tardes
e as cidades eram todas santas
você aparecia na janela de um trem
e nós íamos
até perto de Ribeirão
no vagão Pullman
suas mãos enluvadas
minhas calças curtas
o vagão-restaurante
era tão íntegro
e tudo parecia distante
tudo que aparecia
vinha de um hemisfério diferente
assim como as palavras
que eu mesmo ia soletrando
elas vinham voando
e não era o trem que voava
era o mundo
foi assim a minha infância
foi assim a sua infância
nós íamos
soletrando o universo
e cada nova palavra
era um estampido
um despertar
um desmergulho
ou seria uma fonte
o lugar
de onde você saía?
não
não era um rio certamente
estávamos num submarino?
éramos um corpo somente?
abríamos a escotilha
para angariar o céu
para todos os pobres deste mundo?
ah mãe
bela e destemida
orando ao entardecer
nunca para si
mas para aqueles de nós
que ainda estão
nos portarretratos
do seu quarto
para todos aqueles que somos
filhos
netos
filhos dos netos
e seu adorado marido
todos nós ficaremos bem
mesmo que estejamos
pranteando
ternamente
em torno do seu corpo
          abençoado sonho
          em que você volta
          só pra dizer:
          não há nada que nos separe