(14:01 h)

estou falando com você
cidade
quase sem pudores
até parece
que minha voz é alcançada apenas por mim
e por aquela árvore solitária
e verdadeira
ali
do outro lado
de fronte ampla
último espetáculo da natureza
o inverno arde
e no entanto
devo ser o único caminhante
a percorrer suas veias
abertas
nesta tarde

já estive aqui tantas vezes
e já não consigo escrever
a dor desceu até os ombros
por isso
esta pronúncia silenciosa
por isso
este jejum
esta ternura
esta cusparada
já não escrevo mais suas memórias
entretanto
conto cada minuto deste dia doentio
e seguirei contando
é tudo o que me resta
esse é o trabalho, essa é a fadiga
estou falando com você
cidade
e sequer sei nomeá-la
mas não importa
nada mais importa
trago as mãos nos bolsos
e entre o polegar e o indicador
aperto uma orgia singular
eu estou desperto
à margem de um mundo
e no centro de outro
cobre-me a sombra da grande conspiração
corporativa
estou transpirando farrapos
num ponto de ônibus
e a vida segue
em seu eterno congestionamento
homens e mulheres
abrigados em seus confortáveis escafandros
passam
param
tornam a passar
sou finalmente prisioneiro do ar que respiro
nesta cidade sem janelas
estou falando com você
meu amor
através dos homens que me assombram
já não há mãos dadas no mundo
somos muitos
e estamos sós