(15:32 h)

toda história começa agora
no justo instante
em que o deus das pequenas coisas
arrebenta meus tímpanos
e grita
          “sem minha luz não és nada
          sem minha mão não há alívio
          sem meu olhar não há piedade
          olhe para o meu amor
          só ele te levanta
          sou tua carícia e teu êxtase
          sou a cura para tua dor”
          e de repente
          ele já não grita
toda a história agora recomeça
sou minha própria obra
em meio à devastação
tenho os pés assentados
em outros planos
em outra dimensão
em outra ordem
eu deveria ver estrelas
no meio da tarde
posto que não são os gritos
que me reanimam
são relâmpagos
é um rio de relâmpagos
infiltrado na corrente sanguinea
e um caudoloso enigma
escorrendo dos ouvidos
         toda a tarde tem sua cor
         própria
         nesta inventou-se o vermelho
         – a mansidão do azul
         e a expressão do verde
         não estão aqui –
         só restou a rubra porção
         de vida
         e num curto alheamento
         ela se apresenta inteira
olho para minhas mãos
o sangue sem dor está ali
marcando a tarde
esta tarde em que o deus
das pequenas coisas
se apresentou luxuosamente
a mim
toda história começa agora
quando os passageiros
nesta via sem saída
me olham
amedrontados
          pai nosso que estais
          sobre os telhados
          sobre as antenas
          pairando acima das cúpulas
          planando como um helicóptero
          vejo teu coração
          meu pai
          teu coração é uma pomba
          minha adoração
          meu ódio
          minha culpa
          minha máxima
          expressão de dúvida
          estou acima
          estou abaixo
          é tão difícil
          continuar
          mas mesmo assim
          livrai-me de todo o mal
é tudo pura invenção
eu diria mesmo um delírio
nenhum dos transeuntes me olha
nenhum deles sequer
nada no mundo de mim se apercebe
não há rio
não há sangue
não há milagre qualquer
é apenas o efeito
de uma hóstia
uma espécie de benção
em drágeas
no céu da minha boca
          amém